Bem, eu tenho uma gatinha de
19 anos. Na verdade, hoje eu só a
tenho no meu coração, ela morreu. A Minha gatinha não tinha raça definida,
eu chamo isso de “pé-duro”. Até fevereiro deste ano ela era uma senhora muito
saudável. Eu só a levava ao veterinário para tomar vacina. De uns 3 anos para
cá ela começou aparentar que estava perdendo a visão, um veterinário disse que
era catarata, natural para idosos. Eu acho que o déficit de visão não chegou a
ser total.
Ela sempre foi muito
esperta, arisca, opiniosa, brincalhona e... linda.
Sua alimentação basicamente era ração. Às vezes ela tinha direito a um
pedacinho de presunto fresco ou a lamber o potinho de chandelle de chocolate
depois de mim! Ela adorava e não sossegava enquanto não ganhasse esses mimos.
Mas isso era muuuuito de vez enquando, talvez por isso ela nunca tenha tido
problema nos dentes ou diabetes.
Em uma madrugada de
fevereiro acordei com um barulho. Procurei Minha gatinha e encontrei-a tentando
caminhar, mas ao invés disso ela estava sentada, sem conseguir mexer uma das
patinhas dianteiras, o que fazia com que ela caísse ao tentar se locomover. Na
verdade, ela virava como se estivesse fazendo uma cambalhota, eu fiquei
desesperada! Ela não tinha o menor controle dos movimentos. Eu pensei que fosse
algo neurológico... Logo cedo a levei a uma veterinária que solicitou exames de
sangue. Com isso constatou que as funções hepáticas e renais dela estavam bem
comprometidas com taxas muito alteradas, indicando Insuficiência Renal Crônica. Ela urinava bem, mas o rim não estava
retirando as impurezas do rim de forma satisfatória, o xixi estava bem
clarinho. O tratamento indicado foi soroterapia.
Como a Minha gatinha estava bem fraquinha ela não ofereceu resistência para
pegar a veia de acesso para o soro. Por um semana eu a levei à clínica para
receber 300ml de soro durante 4 horas. Ao final da semana ela já estava mais
espertinha e já com os movimentos mais coordenados, então não deixou de jeito
nenhum a veterinária pegar acesso na outra patinha! Eu já fiquei mais animada,
essa era a Minha gata!! Ninguém encostava no rabo dela, ela não deixava nada
preso em seu corpo por mais de 10 segundos! Quanto mais uma agulha com um
esparadrapo grudado! Apesar de feliz com a visível melhora dela, fiquei
preocupada porque a agitação natural dela impedia continuar o tratamento por
mais uma semana como estava prescrito. Então, seguimos com hidratação oral com
soro caseiro por mais 10 dias. Ela não aceitava água ou soro, por isso
precisamos utilizar uma seringa para colocar os líquidos na boca dela. Ela
esperneava muito, mas dava certo. Mais ou menos a cada 20 minutos eram 30 ml,
uma parte caía fora, mas dava para ter uma noção do quanto ela estava
ingerindo. A seringa utilizada era de 10 ml. E assim ela melhorou recobrando os
movimentos coordenados das patas. Mas aí surgiu outro problema... Constipação
intestinal = prisão de ventre. A veterinária prontamente sugeriu fazer uma
lavagem intestinal. Eu discordei, achava que seria uma violência com a minha
velhinha! Eu já tinha bem claro para mim (e para ela) que não aceitaria
procedimentos invasivos... Perguntei quais as medidas alternativas, então ela
indicou o uso de supositório (de glicerina para criança, compra em farmácia
mesmo) Resolveu temporariamente... A cada dois dia era preciso colocar um
supositório... De qualquer forma era um sofrimento... à essa altura já havíamos
mudado a ração em grãos sólidos para aquela de latinha que é mais molinha e
molhada. Acho que ela passou mais ou menos uma semana com essa prisão de
ventre. E depois ficou bem.
Ela passou março, abril e
maio sem apresentar nada. A única diferença era a nova ração e também o fato de
ela não beber água sozinha... Isso me deixava preocupada, mas a veterinária não
ressaltou nada e nós conseguíamos que ela bebesse água através da seringa. O
apetite sempre preservado.
No início de junho,
novamente ela parou de andar, mas dessa vez eram as patinhas traseiras que não
respondiam aos comandos. Ela simplesmente caia para o lado. E a constipação retornou. Levei novamente à
veterinária, mas dessa vez à outra profissional. Dessa vez, para a constipação
foi prescrito mel karo. Bastou uma
colherzinha de café diluída em água para limpar os intestinos da Minha gatinha!
Achei fantástico! E fiquei revoltada com a veterinária que queria fazer lavagem
intestinal. E para as patinhas, essa veterinária disse que era preciso aplicar
injeções e anti-inflamatório, porque ela também estava com artrose e se fosse
aplicar o soro na veia ela poderia morrer por ficar encharcada já que o rim não
estava trabalhando direito. Por cindo dias a levei à clinica para as aplicações
de anti-inflamatório, mas eu comecei a achar que na verdade era apenas um
placebo... A veterinária disse que ela não voltaria a andar de jeito nenhum.
Então, eu parei de leva-la, interrompi o tratamento por conta própria. Alguns dias
depois ela começou a se locomover se arrastando, ela ficava sentadinha e puxava
as patinhas de trás com as da frente, em alguns momentos até levantava para
andar ou dar umas corridinhas, mas sempre toda tortinha com a coluna arqueada
para o lado, acho que isso deveria doer muito... Como estava difícil para ela
se locomover e ela não conseguia ficar na posição para fazer as necessidades
fisiológicas ela começou a usar fraldas descartáveis. Eu comprava tamanho P
para até 4 ou 6kg. Ela não reagiu muito bem à Pampers porque essa soltava um
gelzinho... Ah, a gente fazia um furo em formato de cruz para passar o rabo
dela, era por esse buraquinho que o gel da fralda escapava. Eu acho que a
melhor era a da Turma da Mônica. E o apetite sempre preservado, eu acordava 3
vezes por noite para alimentá-la e hidrata-la.
Passaram-se mais
alguns dias, até que ela parou de se locomover novamente, não conseguia nem se
manter sentada sem apoio. Aí apareceu outra mazela... O ânus dela começou a
ficar inchado e ela começou a ter diarreia o tempo todo, além de aparecer
sangue nas fezes. Corri para a veterinária de novo! Ela disse que era uma
infecção. Fez tratamento para verme. Só então iniciou o antibiótico, primeiro o
Pentabiótico, depois o Cloranfenicol e ainda teve o Ciprofloxacina. Foram uns
15 dias de antibiótico. O edema diminuiu
significativamente e o sangramento também, mas a diarreia continuou. Tinha dia
que o anus dela ficava bem inchado de novo, eram fezes sólidas (apesar da
diarreia) que se acumulavam e ela não tinha força no esfíncter para colocar
para fora, então era preciso espremer para sair... O sofrimento já estava
grande.
A (não) qualidade de
vida dela estava me deixando muito angustiada. Ou melhor, era praticamente só a
não qualidade de vida. Ela já não enxergava bem, não bebia água sozinha, não
andava, não fazia as necessidades na posição correta. Só o apetite que apesar
de tudo isso, continuava preservado, era o que me consolava.
Eu sabia que ela
estava velhinha e poderia morrer. Eu dizia que estava preparada, mas eu não
queria precisar escolher quando isso deveria acontecer. Por mim, seria assim: um dia eu iria até onde
estava deitadinha e não a veria mais respirar. Ela continuaria dormindo e
pronto. Meu maior medo era chegar a um ponto de
envelhecimento/adoecimento/sofrimento que fosse preciso pensar até que ponto
valeria a pena mantê-la viva apenas com sofrimento. Eu pedi para ela me avisar,
até quando. Era ela quem iria me mostrar a hora, simplesmente dormindo para não
acordar mais ou mostrando que eu precisaria escolher e quando.
Comecei a pesquisar sobre
eutanásia de animais. Eutanásia, felino, cuidados paliativos, gato idoso, coloquei
essas palavras no google em busca de uma luz para a minha angustia. Encontrei
alguns sites interessantes, dentre eles o site da faculdade de veterinária da
USP. Lá há um questionário sobre qualidade de vida do animal. São 12 perguntas,
das 12 eu só respondi de forma positiva 2: ela come e não vomita. Isso me
deixou ainda mais angustiada. Ela se comunicava com a gente, demonstrava
carinho e vontade de se alimentar... Ao cuidar dela eu chorava por saber que
ela não poderia estar feliz (sobre)vivendo daquele jeito.
Talvez seja menos difícil ao
receber o diagnóstico de uma doença como calazar, pois nesse caso não há uma
escolha. Mas quando a pessoa se depara com a possibilidade de escolher quando
permitir que seu animalzinho de estimação, que por 19 anos foi saudável e
começou a apresentar mazelas próprias da velhice, pode/deve morrer é muito
complicado. Eu pedi à ela para me avisar. Era ela quem iria dizer até quando.
Após uma semana sem tomar
antibióticos, apareceu uma ferida no dorso dela, próxima ao pescoço. Eu tinha o
cuidado de muda-la de posição para evitar escaras... Novo desespero... uma
ferida! Eu pensei que isso seria o sinal do fim. Nova ida à veterinária, que
explicou tratar-se do machucado por conta de tantas injeções de medicação, só
agora havia pelo caído. A única coisa a fazer era passar pomada para ajudar na
cicatrização. Nesse dia, eu criei coragem e perguntei quando pensar em
eutanásia. A veterinária brigou comigo, disse que não concordava, se Deus a confiou
à mim, eu teria que cuidar até o fim e que isso iria me fazer mal. Mas eu já
estava pensando apenas na Minha gatinha, eu não queria mais vê-la sofrendo. Tudo
que eu já havia me trabalhado para aceitar a possibilidade de precisar escolher
foi destruída pela melhor das intenções da veterinária. Voltamos para casa para
continuar cuidando. Na manhã seguinte, a gatinha estava muito mais fraquinha,
com os olhinhos virados e as patinhas muito moles, mas continuava respirando.
Fui de novo à veterinária, dessa vez ela disse para hidratá-la mais e que
poderia dar mais antibiótico, assim talvez ela sobreviveria mais uma semana.
Mas também deu a opção de não medicar, orientou que fosse hidratada, assim ela
talvez descansasse em dois dias. Eu optei pela segunda orientação. Na tarde do
mesmo dia, ela melhorou um pouco, aceitou comida e seus olhinhos voltaram ao
normal. Ela melhorou, mas não estava bem, e era impossível ficar boa. Decidi
buscar outra opinião.
Conversei com pessoas
queridas que perderam seus bichinhos e indicaram veterinários que concordam com
eutanásia. Conversei com meus pais. Meu pai concordou, minha mãe não. Ela não
concordou por motivos religiosos “se Deus deu a vida, só Deus pode tirar”.
Mas... para mim o pecado é deixar sofrer
sem perspectiva de melhora quando existe uma possibilidade de amenizar isso.
Para mim a eutanásia, em uma situação como essa, é um cuidado que podemos ter com o doente. É caridade, é compaixão, é
amor. Lembrei da oração de São
Francisco, protetor dos animais: “Senhor, fazei-me instrumento de vossa paz”.
Apesar de eu ter
interpretado a ferida como o início do fim, eu ainda não me sentia segura se
isso era o aviso da Minha gatinha. Na noite seguinte à discussão sobre
eutanásia, a Minha gatinha passou a noite inteira miando. Fraquinho. Constante.
Eu fiquei ao lado dela com a cabecinha dela apoiada na minha mão. Nessa noite
eu disse a ela que tudo iria ficar bem, logo.
Encontrei no questionário da
USP indicadores para pensar na (não) qualidade de vida dela. Mas a hora de
decidir a gente só encontra com o coração.
No dia seguinte procurei um
dos veterinários indicados, expliquei toda a história. Ele me mostrou que Minha
gatinha não estava nada bem, continuava se mantendo viva por causa do apetite
(apesar de o organismo não processar mais os alimentos adequadamente) e do
coração que estava muito bem, apesar da insuficiência dos outros órgãos. Ele foi
muito atencioso, me ouviu e explicou tudo pacientemente. Perguntou se eu iria
deixa-la com ele ou se eu iria esperar do lado de fora. Não, eu fiquei com ela,
o tempo todo. Até a respiração parar. E ela dormiu para não acordar mais. O
último cuidado dedicado à Minha gatinha foi um funeral na praia. Agora ela está
bem.
Decidi relatar tudo isso
para ajudar pessoas que estejam passando situações parecidas com seus queridos
bichinhos. É muito triste e difícil, mas é preciso não ser egoísta e pensar
mais em quem mais está sofrendo com dor e sem perspectiva de melhora. A Minha
gatinha não ficou boa, curada e saudável, mas ela ficou bem. Então, comigo
ficaram a saudade, o carinho e as lembranças boas. Toda vez que a saudade
aperta e as lágrimas vêm por querê-la junto à mim, eu lembro que se ela
estivesse aqui, na verdade, ela estaria sofrendo. Ela está bem e eu também.
Bises.